quinta-feira, 15 de julho de 2010

BDpress #143: AINDA SOBRE HARVEY PEKAR – in PÚBLICO, “O CRONISTA DAS COISAS BANAIS”

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Público, 14 Julho 2010

 Marco Vaza

HARVEY LAWRENCE PEKAR - O CRONISTA DAS COISAS BANAIS

Não havia segredos na vida de Harvey Lawrence Pekar. Nem acontecimentos extraordinários. O mundo sabe, porque o mundo leu sobre a sua rotina diária durante mais de três décadas em banda desenhada. Ele escrevia (não desenhava porque não tinha jeito) American Splendor, uma BD sem super-heróis, ou mundos de fantasia.

Era gente comum, a fazer coisas banais, como ir trabalhar, ou comprar pão, ou, simplesmente, andar na rua. Pekar, o protagonista da sua própria história aos quadradinhos, foi encontrado esta semana morto na sua casa em Cleveland, nos Estados Unidos, mas não foram reveladas as causas da sua morte. Tinha 70 anos.

Sabia-se que ele tinha tido cancro, um linfoma. Contou-o numa novela gráfica em 1994, Our Cancer Year, que escreveu em conjunto com a sua terceira mulher, Joyce Brabner, relatando todos os pormenores da doença e do tratamento.

Pekar não escondia nada da sua vida pouco extraordinária. Trabalhava como arquivista num hospital para veteranos de guerra em Cleveland, vivia numa casa atafulhada de livros, discos e lixo, não sabia lavar a loiça e gostava de jazz. "As actividades do dia-a-dia têm mais influência numa pessoa que qualquer evento espectacular ou traumático. São os 99 por cento da vida sobre os quais ninguém escreve", dizia.

"Harvey era como um "blogger" antes de haver Internet. Ele era o Seinfeld [a sitcom sobre nada] antes de haver Seinfeld. Os comics, que eram fantasias de poder para crianças de 12 anos, podiam ser agora sobre qualquer coisa", diz Dean Haspiel, que desenhou algumas das edições de American Splendor e um livro que relata a juventude de Pekar, The Quitter (O Desistente).

Esplendor

Nascido a 8 de Outubro de 1939, Pekar era filho de imigrantes polacos e vivia por cima da mercearia da família. Não chegou a completar os estudos universitários e arranjou trabalho num hospital em Cleveland.

Escrevia, em part time, críticas de jazz, uma das suas grandes paixões - era, desde os 16 anos, um coleccionador de discos -, e começou, a partir de 1976, a colocar as crónicas da sua vida nas páginas de American Splendor, que, rapidamente, se tornou um fenómeno da banda desenhada underground norte-americana.

Não sabia desenhar. Apenas escrevia as suas histórias com desenhos básicos e entregava-os a alguém para as ilustrar - começou por ser Robert Crumb, seu amigo de Cleveland que acabaria por se tornar num dos mais celebrados autores de banda desenhada dos EUA, criando, por exemplo, a personagem Fritz the Cat.

Pekar não fugia aos aspectos mais sombrios do mundo e da sua própria vida, à existência de um ser solitário, ansioso e quase sempre deprimido, mas acrescentava-lhe uma dimensão cómica. Porque a vida, segundo o próprio, tinha piada. "O humor da vida quotidiana é muito mais engraçado do que o que os humoristas dizem na televisão. São as coisas que acontecem à nossa frente, quando nada é rotina e tudo é inesperado. É sobre isso que eu escrevo", dizia.

Pekar pop

Pekar começou por ser um fenómeno da contracultura dos EUA, mas acabou por ser adoptado pelo sistema. No entanto, rapidamente se percebeu que o que o sistema queria era gozar com ele. No início dos anos 80, passou a ser convidado regular do Late Night with David Letterman e o apresentador do talk-show aproveitava para sacar umas gargalhadas à custa daquela figura excêntrica, meio careca e desmazelada.

Pekar entrou no jogo durante uns tempos, mas foi-se tornando cada vez mais ácido e crítico. Numa ocasião, atacou frontalmente a General Electrics, a companhia-mãe da NBC (estação televisiva que transmite o talk-show), e foi banido do programa durante vários anos.

Voltou a ter alguma dose de estrelato (algo que o fazia sentir-se desconfortável) em 2003 com o filme American Splendor, narrado pelo próprio autor, uma admirável mistura de ficção e realidade, de documentário e história de amor, de imagem real e animação. O actor Paul Giamatti encarnou-o na perfeição. O filme ganhou prémios em vários festivais, incluindo o Grande Prémio do Júri em Sundance e o Prémio da Crítica em Cannes - teve ainda uma nomeação para melhor argumento adaptado nos Óscares.

Mas Pekar nunca se descaracterizou. Continuou a viver a mesma vida, a viver com a mulher e a filha adoptiva Danielle, manteve os seus amigos (que eram, claro, personagens das suas histórias), trabalhou no mesmo emprego até 2001, porque a banda desenhada não lhe chegava para ter independência financeira e continuou a escrever American Splendor, para além de outros livros, que lhe valeram vários prémios.

A sua própria personalidade não o deixava apreciar o sucesso, como dizia o seu alter-ego dos quadradinhos - que, naturalmente, era ele próprio. "Claro que não penso que estou bem na vida. Sou demasiado inseguro, obsessivo e paranóico."


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