domingo, 18 de dezembro de 2011

BDpress #305: A BD, UM OBJECTO CULTURAL AINDA NÃO IDENTIFICADO – ENTREVISTA COM THIERRY GROENSTEEN

Afinal não foi ontem, nem será hoje, que temos pronta a proposta de Regulamento para os Troféus Central Comics. Há sempre qualquer pormenor que precisa ser revisto por alguém que perceba de determinado assunto, auscultar melhores opiniões, etc… Portanto prevemos que a coisa estará mesmo concluída, apenas na próxima terça ou quarta-feira.

Entretanto fica aquí o recorte do suplemento Ípsilon (do Público) com uma entrevista a Thierry Groensteen, realizada aquando da sua estadia em Lisboa, para as Primeiras Conferências de Banda Desenhada em Portugal.

Esta entrevista é crucial para quem queira perceber um pouco do que se passa no mundo da BD actualmente.

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Suplemento Ípsilon do jornal Público, 16 Dezembro 2011

A BD, UM OBJECTO CULTURAL 
AINDA NÃO IDENTIFICADO

José Marmeleira

Para onde vai a banda-desenhada? Melhor: onde está a banda-desenhada? Na infância, em casa, em lugares desconhecidos? Thierry Groensteen, importante teórico e estudioso belga, que passou discretamente por Lisboa, aponta algumas coordenadas. Para identificar uma arte que continua a crescer, longe dos nossos olhos.

Thierry Groensteen diz que a vulgarização da presença da banda-desenhada no espaço público representa o fim de uma longa luta pelo seu reconhecimento cultural

A banda desenhada assemelha-se, para muito boa gente, um amigo ou um conhecido que não voltamos a ver. Quase podíamos declarar o seu desaparecimento. Exageramos. Nos EUA, no Japão e na França a BD continua a ter mercado e indústria, mas esse facto não afasta a sensação de que a sua vida, por mais frutuosa e rica que tenha sido e ainda seja, se afastou do nosso quotidiano. Classificada como menor, tornou-se também minoritária, coisa de subculturas, de pequenas comunidades. E como tal, uma arte escondida, sombreada. Ora, está na altura de lhe entornar um pouco de luz.

Afinal, ela move-se, e expande-se ao ritmo dos seus autores, das suas formas e experiências.

O teórico, crítico, professor e autor de livros fundamentais da literatura critica sobre o tema Thierry Groensteen, figura histórica da cena francófona, esteve em Lisboa para participar nas Primeiras Conferencias de Banda-Desenhada e é um interlocutor valioso para discutir e conhecer os caminhos contemporâneos desta linguagem feita de texto e imagem. A relação com a arte contemporânea e os intelectuais, a abstracção e a autobiografia, a "eterna" luta da banda desenhada pelo reconhecimento cultural foram alguns dos tópicos que atravessaram a conversa que se segue.

Nas últimas décadas, a banda-desenhada parece ter desaparecido do radar cultural dos meios de comunicação. Tornou-se invisível, quando esquecemos que ainda existe socialmente...

Não sei se estou de acordo consigo (risos), mas talvez tenha alguma razão. Durante anos, a banda-desenhada lutou pela sua legitimação cultural, o que lhe deu uma certa visibilidade pública. Há quem entenda que esse debate acabou e que a banda-desenhada se tornou, por direito próprio, parte integrante da realidade da cultura. E de facto os seus autores estão em todo lado. Fazem publicidade, ilustração, trabalham no teatro, no cinema, exibem os seus trabalhos em galerias e museus. Portanto, a banda-desenhada está no espaço público, mas, ao mesmo tempo, deixou de ser um assunto apaixonante.

No seu livro "Un object culturel non identifié", de 2006, revê e discute a incompreensão a que a banda desenhada foi votada desde o seu nascimento. Que balanço faz cinco anos depois? Permanece um objecto estranho, obscuro?

Passou pouco tempo de facto, as coisas não mudaram muito. Em França, o seu ensino ainda é pouco considerado, assim como o espaço que a imprensa dedica à crítica. O que mudou, talvez, foi a relação com o mundo das artes plásticas. Nos últimos dois, três anos, em Paris e noutras cidades francesas, realizaram-se importantes exposições dedicadas a esse diálogo, como a Bienal de Arte Contemporânea de Le Havre. E nota-se um regresso ao desenho, no qual muitos autores participam, expondo em salões e galerias ao lado de artistas plásticos. E podíamos acrescentar um festival como o Fummeto, em Luzerna, que no ano passado incluiu no seu programa obras de Jim Shaw e Dan Perjovschi.

Como vê esse diálogo, essa aproximação?

Se os artistas podem usar o corpo, fazer filmes, escultura, fotografia, porque não banda-desenhada? É apenas mais um material, um meio. Não acredito, porém, que pertença à lógica da arte contemporânea. Está mais próxima do cinema e da literatura. Quando olhamos para o que foi criado desde Rodolphe Töpffer até aos dias de hoje, ao longo de quase dois séculos, encontramos uma "literatura" dividida em géneros e subgéneros, grandes autores, personagens. É um domínio que pertence a um mundo de ficção, baseado na representação e na imaginação, e isso afasta-o, em certa medida, da arte contemporânea.

Sendo um médium e uma forma de expressão artística, a banda-desenhada tem carecido, ao contrário de outras artes, do interesse geral dos pensadores. São poucos os que lhe dedicaram obras escritas ou textos de referência. O que explica essa indiferença?

No caso da França, lembro que nos anos 60, artistas e intelectuais, como Alain Resnais e Edgar Morin, estiveram associados ao movimento bedéfilo. Mas a maioria era sobretudo movida por uma nostalgia da infância ou da adolescência.

O Alain Resnais ainda hoje fala de banda-desenhada...

E de facto gosta de banda-desenhada, mas julgo que deixou de a seguir a partir dos anos 60. O Jean-Paul Sartre, em "Enfance d'un Chef", escreve sobre a banda-desenhada que lia quando era criança, mas nunca se interessou por aquilo em que esta se tornou. De alguma forma, não concebiam que pudesse crescer como um objecto sério, digno de análise e reflexão. Penso que isso aconteceu com muitos intelectuais. Continuaram a ir ao cinema, a ver filmes, mas deixaram de ler banda-desenhada. É um discurso que permanece actual. Desvaloriza-se a banda desenhada porque supostamente não cresceu. Para a maioria das pessoas, começa com os Estrumpfes e acaba com o Super homem. Desconhecem aquilo que é hoje, não estão a par da sua diversidade. Só uma pequena audiência está consciente dessa evolução e não sei porquê. Há no entanto aspectos novos e positivos. Por exemplo, o público, e regresso ao contexto francófono, já não é fundamentalmente masculino. Há cada vez mais mulheres a lerem banda-desenhada.

Uma das tendências contemporâneas é a abstracção. Como vê esse caminho, que alguns autores têm trilhado nas últimas décadas?

Se achar que toda a banda-desenhada tem de contar uma história, então a abstracção é estranha à banda-desenhada.

Mas se a definir ou caracterizar como a divisão das páginas em diferentes quadros, independente¬mente dos conteúdos desses quadros, então nesse caso a abstracção é uma forma de abrir o campo da própria banda-desenhada.

A abstracção não esconde o desejo de consolidar uma legitimação artística?

Não, penso que não. Alguns artistas nos anos 1930 e 1940 chegaram a fazer banda-desenhada abstracta, embora não tenham reivindicado essa classificação. O Kandinsky, o Pierre Alechinsky fizeram algumas. Mas não existiam historiadores de banda-desenhada e essas obras não foram recebidas como tal. O mesmo se pode dizer dos romances em xilogravura do Frans Masereel e do Lynd Ward. Hoje muitos historiadores apontam-nos como precursores. Nem sempre foi assim. Nos anos 60, os principais académicos diziam que as tiras dominicais dos jornais eram a verdadeira e autentica banda desenhada.

Existem várias tendências dentro da banda-desenhada, umas minoritárias, outras dominantes. Peço-lhe que apresente algumas...

A mais visível é o desenvolvimento das "graphíc novels", embora sejam muito difíceis de definir. Surgiram como longas narrativas, superiores, em número de páginas, aos álbuns tradicionais, e muito sofisticadas. Podem competir com a literatura em termos de estrutura, ambição narrativa, enredo, construção e caracterização das personagens. Isto é uma coisa inédita, pois o formato do álbum da BD franco-belga, imposto pela indústria, não permitia ir tão longe. "Maus", de Art Spiegelman, "Jimmy Corrigan", de Chris Ware, e algumas obras de Alan Moore inscrevem-se nesta corrente.

E onde podemos colocar, por exemplo, a banda-desenhada experimental de Ruppert & Mulot?

Claramente, nas fronteiras entre a banda desenhada e a arte contemporânea. Nos anos 70 e 80, autores como Renato Calligaro e Dino Buzzati, que publicou o seu "Poema a fumetti" em 1969, tentaram criar uma banda-desenhada poética, mas esta nunca se transformou num género. Actualmente, penso que entre a narrativa e a abstracção há espaço para algo semelhante, em que a história já não é o centro da obra, mas sim a experiência com as imagens, as formas, as cores, as técnicas e os estilos. "Pour en finir avec le cinema", de Blutch, é um bom exemplo. Os seus primeiros livros eram bastante clássicos, mas nos mais recentes, como este, desconstrói a narrativa e constrói uma totalidade a partir de fragmentos de histórias.

Outra corrente é a autobiografia...

Sim, e tem-se reforçado por causa dos blogues, que os autores usam para mostrar o quotidiano. Algumas são incrivelmente populares, embora duvide da sua qualidade. Prefiro a banda-desenliada autobiográfica anterior à proliferação dos blogues. Tém produzido coisas bastante frívolas...

Encontramos muitas mulheres a trabalhar com o género autobiográfico. O que motiva essa inclinação?

Não cresceram com a cultura e os géneros da banda-desenhada. O seu interesse não parte desse passado. Usam a banda a desenhada um pouco como certas escritoras. De alguma forma, Persépolis, de Marjane Satrapi, nasceu assim.

Tem visto as adaptações cinematográficas das histórias dos super-heróis? Como analisa o fenómeno?

Só vi "The Watchmen", de que gostei. A banda-desenhada dos super-heróis tende a ser um produto derivado dos filmes. Os jovens vêm os filmes e eventualmente comprarão os livros. Ou seja, a lógica inverteu-se. A Marvel e a DC sobrevivem hoje apenas graças a Hollywood. Por outro lado, com a evolução da indústria dos efeitos especiais e digitais, a ocasião destas adaptações não me surpreende.

Dirigiu o Festival de Angoulême e várias revistas teóricas. Escreveu sobre narrativa, a cor e o humor na banda-desenhada. Em "Système de la bande dessinée" [publicado em 1999], analisou-a enquanto linguagem. O seu percurso é indissociável desta arte.

Quero desenvolver uma cultura da banda-desenhada que possa ser partilhada pelos intelectuais e pelo público em geral. Fico chocado quando percebo que o Milton Cannif ou o George Herriman são desconhecidos para os meus alunos [da École Supérieure de l'Image em Angoulême]. Isto não acontece noutras artes. Se queres ser um cineasta, tens de passar pela cinemateca; se queres ser um escritor, tens de ler livros. A banda-desenhada parece não ter história, nasceu ontem. As pessoas sabem os nomes de cineastas e artistas, mesmo que não conheçam as suas obras. Não podemos dizer o mesmo quando falamos de Milton Cannif ou George Herriman. A banda-desenhada ainda é um objecto cultural não identificado.


ENTRE A NARRATIVA E A ABSTRACÇÃO, 
ELA EXPANDE-SE

Aberta à experimentação sobre as formas e narrativas, sem esquecer o real e a ficção, a banda-desenhada pode estar a viver uma idade de ouro.

Em Janeiro passado, L’Association, editora independente* que na década de 1990 renovou a banda-desenhada europeia, esteve perto de fechar as portas. Questões laborais originaram um conflito que teve o seu pináculo numa greve em pleno festival de Angoulême (com stands fechados e cartazes reivindicativos). Os protagonistas: de um lado J.C. Menu. editor e director informal da L' Association, homem polémico e irascível: do outro, a maioria dos empregados e antigos fundadores da editora (estes últimos autores de banda-desenhada relativamente consagrados no "mainstream").

Para lá dos problemas económicos e do reacender de ressentimentos e antigas rivalidades, o "combate" mais interessante decorreu nos bastidores Criada em 1991, a L' Association foi, desde o início, um espaço comprometido com o desejo de expandir as fronteiras da banda-desenhada. inspirado em musas como o movimento Oulipo (Ouvroir de Littérature Potentielle), de Raymond Queneau e Georges Perec, as vanguardas históricas e, em termos de produção e organização, a Ética DIY (do-it-yourself) do punk.

Na altura, o contexto não era simpático e J.C. Menu (também ele autor), com a cumplicidade tácita dos outros autores-fundadores, esteve longe de ser conciliador. Rapidamente apontou as baterias ao culto da banda-desenhada juvenil, aos bedéfilos, à mercantilização, a Asterix e aos super-heróis e a toda uma série de rituais que caracterizavam a cena francófona. Porventura terá ido longe de mais (em vários ensaios publicados) na recusa intransigente da cor e no corte com certos nomes históricos. E alguns dos seus "compagnons de route". agastados com a deriva radical e seduzidos pelas condições de trabalho das grandes editoras, abandonaram a L' Association; sem grandes dramas, diga-se, pois esta conhecia um inesperado caso de sucesso comercial com "Persépohs", de Marjane Satrapi (cujo primeiro volume saiu em 2000).

Estes foram os campos que se reuniram quatros meses depois na assembleia que ditou a sobrevivência da editora. Um que não nega à banda-desenhada a sua história, sem isso signifique uma regressão estética (muito pelo contrário). O outro que insiste na sua expansão formal, evocando o modernismo e as vanguardas e investigando precursores possíveis dessa expansão, se necessário noutras artes visuais e linguagens. No fim, foi Menu quem deixou a casa que ajudou a fundar. Quanto à L’Association. continua a defender a independência artística e a expansão da banda-desenhada. Mas sem extremismos.

Uma idade de ouro?

O debate sobre o que é e pode vir a ser a banda-desenhada não esmoreceu com o fim desta pequena crise. Agita-se em blogues, livros e revistas, na academia. Há quem veja o médium como (eternamente) subaproveitado, atendendo às suas possibilidades. A narrativa, a ficção, a relação entre texto e a imagem, a prática do desenho, o trabalho com conceitos, são alguns dos aspectos que, defendem críticos e estudiosos (como os portugueses Pedro Moura e Domingos Isabelinho), ainda não foram esgotados.

Alguns autores vão respondendo ao repto. Os americanos Andrei Moloriu e Derik Badman introduzem a abstracção no interior das pranchas, dissolvendo sentidos e apelando à contemplação dos leitores. Jochen Gernen, autor francês com um pé na arte contemporânea, subverte os códigos narrativos e os sistemas da representação da banda-desenhada, num jogo entre as palavras e as formas, e a serialidade e o desenho. Warren Craghead, outro americano, dialoga com caligramas de Apollinaire: os seus desenhos "saltam" para o espaço físico dos leitores. E é impossível não mencionar a implosão visual da perspectiva e da cor nas obras do japonês Yuichi Yokoyama.

Esta erosão de fronteiras não configura uma tendência definida, não é classificável em categorias ou grupos, embora uma boa parte dos seus protagonistas seja proveniente das artes plásticas e existam pioneiros (Martin Vaughn-James). Por outro lado, falar de abstracção na banda desenhada significa também falar de narrativa. Porque ainda se contam histórias e se criam personagens. Apenas os processos, as estratégias, mudaram, ou melhor, complexicaram-se. Há quem experimente com os balões, as vinhetas, a sequencialidade, o formato do livro. Há quem se aproprie de fotografia, da colagem, da caligrafia.

É necessário lembrar que esta "expansão" não surgiu do nada. Para não recuarmos ao princípio do século XX, basta lembrar o impacto de "Here" (1989), de Richard Mcguire (sim, caros melómanos, é o baixista dos Liquid Liquid). Mas a julgar pela qualidade das obras de Chris Ware, Anders Nilsen e Dominique Goblet, entre muitos outros autores, é como se uma idade de ouro estivesse em construção. E não é apenas a experimentação que alimenta essa possibilidade. E também a ligação intima da banda-desenhada ao real e à ficção. Leiam "Fun Home", de Alison Bedchel, livro sobre a redescoberta e religaçâo da autora com o seu pai. Sobre a memória, a sexualidade e a família. E digam, se tiverem coragem, que estamos enganados. J.M.

(*) Nota do Kuentro – As pessoas – mesmo os jornalistas, críticos, especialistas, etc... – persistem em denominar incorrectamente certas coisas, usando denominações impróprias (só porque as leram em determinadas alturas ou ouviram em certas conversas e não lhes fazem qualquer tipo de juízo crítico) para classificar determinados tipos de editores ou autores, especialmente relativos à Banda Desenhada, com palavras que não significam nada nesse contexto, prosseguindo com o uso de um eventual erro inicial. Para classificar um editor como “independente” teria que se especificar em relacão a quê – não é o mesmo que dizer “país independente” ou “pessoa independente” –, porque nestes casos toda a gente percebe do que se fala. L’Association sempre se considerou uma editora “alternativa” e com esta palavra percebemos o que querem dizer: alternativa ao mainstream! Depois queixam-se que a Banda Desenhada permaneça no limbo do mundo infantil ou mesmo da indigência.

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