terça-feira, 4 de agosto de 2015

BDpress #464 – O ÀRABE DO FUTURO – DE RIAD SATTOUF

BDpress #464
O ÀRABE DO FUTURO
DE RIAD SATTOUF

Expresso – Revista E, 1 de Agosto de 2015

Entre ouro e lama
Premiada no Festival de Angoulême, esta novela gráfica mostra a infância do autor na Líbia e na Síria, 
sob o signo de um humor cru

Texto de José Mário Silva


O ÁRABE DO FUTURO
De Riad Sattouf
Edição Teorema, 2015, tradução de Helena Guimarães, 158 págs. €19,90

Filho de um sírio e de uma francesa, Riad Sattouf (n. 1978) era, aos 2 anos de idade, um bebé lindíssimo, com cabelos encaracolados e muito loiros. Essa criança adorada por toda a gente, espécie de anjinho mestiço, é o protagonista de “O Árabe do Futuro”, tuna novela gráfica em que o autor faz da sua infância a matéria-prima narrativa, transportando-nos à Líbia e à Síria dos anos 80, lideradas respetivamente por Muamar Khadafi e Hafez Al-Assad, um pouco à semelhança do que Marjane Satrapi fez com o Irão da mesma época, sob o regime islâmico do ayatollah Khomeini, em “Persépolis”.

A diferença principal entre as duas obras está no ponto de vista, no lugar a partir do qual se olha. Enquanto Satrapi faz da vida em Teerão e da herança persa um pano de fundo para o processo de metamorfose de uma rapariga à procura do espaço próprio que lhe permita respirar numa sociedade claustrofóbica, Sattouf assume a perspetiva de uma criança que ainda não sabe muito bem qual é o seu lugar no mundo. A verdadeira personagem central, mais do que Riad, é o seu pai, Abdel-Razak, um professor de História adepto do pan-arabismo e da necessidade de os árabes apostarem na educação, “para sair do obscurantismo religioso”, mas também admirador de líderes fortes e “visionários”, como Saddam Hussein.

É atrás das quimeras de Razak que a família segue: primeiro para Tripoli; depois para a aldeia natal, a poucos quilómetros de Homs. Em pequeno, quando guardava cabras com um primo, dormindo sob as estrelas, Razak acordou com sede e descobriu uma nascente de água que brilhava. “Mergulhei as mãos e a água vinha cheia de ouro! ” Mas quando chegaram a casa, eufóricos, “o ouro tinha-se transformado em lama”. É sempre entre o “ouro” das grandes expectativas ou ilusões políticas e a “lama” da realidade de um quotidiano sórdido que este livro circula. O seu principal mérito está na forma como reproduz a franqueza cândida da memória infantil, caótica e não filtrada, capaz de saltar de- um episódio cómico (a censura que pinta, a marcador negro, o corpo exposto de Brigitte Bardot na “Paris Match”) para outro de inaudita brutalidade (os pés dos enforcados em plena rua, escorrendo água durante uma bátega), quase sem transição. Os cheiros, os hábitos, as tensões familiares, a natureza agreste dos lugares, a violência omnipresente (miúdos que se agridem e insultam, atiram pedras a burros, espetam uma forquilha num cão), tudo é mostrado com uma secura que torna a matéria dos dias ostensivamente dura, na sua crueza, mas também risível — embora o riso seja sempre áspero, desconfortável, incómodo.

Publicado originalmente em maio de 2014, este primeiro volume da trilogia “Ser Jovem no Médio Oriente” cobre o início da vida do autor (1978-1984) e teve, em França, um sucesso tão inesperado quanto merecido. Além do Fauve d’Or para “Melhor Álbum do Ano” no Festival de BD de Angoulême 2015, entre outros prémios, vendeu mais de 220 mil exemplares. O segundo volume, sobre os anos 1984-1985, foi lançado no início de junho. Trata do regresso à Síria da família Satouff, para que o pequeno Riad ingresse na escola pública e se torne “o árabe do futuro”, nas palavras esperançosas do pai. Se mantiver a qualidade gráfica (linha clara, pranchas densas), a escrita precisa e o humor cáustico, merecerá sem dúvida a atenção de um círculo de leitores mais vasto do que o habitual público consumidor de banda desenhada.


Riad Sattouf

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